segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Gostei de ler

Democracia de cativeiro

Quando o governo Lula tentou dar o golpe no IBGE, todas as cabeças ajuizadas reagiram, mas ninguém deu a importância que o fato merecia. Foi tratado como manobra pontual aquilo que era parte de um plano ambicioso – e que explica alguns dos intrigantes acontecimentos recentes, de Chinaglia a aloprados.

Ainda sob o comando formal de José Dirceu, o governo tentou acabar com a regra que impedia a manipulação política dos dados do IBGE. A mudança feita por Sérgio Besserman Vianna permitia que o instituto explicasse os indicadores à imprensa e produzisse o press release das pesquisas antes das autoridades do governo tomarem conhecimento dos resultados.

Um mecanismo democrático valioso que o governo Lula tentou ceifar. Mas não foi só um arroubo.

Logo que foi eleito pela primeira vez, Lula demonstrou o apreço que tinha pela independência das instituições. Falando sobre a autonomia das agências reguladoras – um grande salto democrático iniciado por Mário Covas e David Zylbersztajn – o então presidente eleito disse que não podia “saber pelos jornais que algum filho da mãe” aumentou um preço de tarifa.

Hoje, como se sabe, as agências reguladoras estão esvaziadas e penduradas na caneta de Dilma Roussef.

É interessante observar esses fatos na mesma perspectiva da eleição de Arlindo Chinaglia para a presidência da Câmara dos Deputados, do inquérito da Polícia Federal sobre os aloprados do dossiê e do que está acontecendo em torno do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado ao Ministério do Planejamento.

Sob o guarda-chuva de Chinaglia também não chove em José Mentor, Professor Luizinho, João Paulo Cunha e companhia ilimitada do PT de São Paulo. É a famosa usina partidária de José Dirceu, onde gorjeiam também Delúbio Soares, Silvinho Pereira e o novamente poderoso Ricardo Berzoini – o chefe dos aloprados.

A forma como essa turma se relaciona com o poder diz muito do que está acontecendo com o Estado brasileiro desde a tentativa de golpe no IBGE.

Bargas, Valdebran, Expedito, Gedimar, Lorenzetti e grande elenco, sob a liderança de Berzoini, conseguiram um milagre. Na casamata da campanha de Aloísio Mercadante ao governo de São Paulo, articularam e executaram o esquema da compra do dossiê Vedoin, operação que foi não apenas flagrada, como em parte filmada e depois divulgada para o Brasil e o mundo. Distraídos, o Brasil e o mundo não estão nem aí para a pergunta que hoje todos deveriam estar fazendo em coro:

Como foi possível que a Polícia Federal (vamos abrir esse parêntese para enfatizar: não estamos falando de um conselho de ética qualquer, ou de um diretório partidário. Estamos falando da Polícia Federal). Então, repetindo: como foi possível que a Polícia Federal concluísse seu inquérito sobre o esquema do dossiê sem indiciar nenhum dos aloprados?

Mais uma ressalva: não se está falando de acusar nem de condenar, mas simplesmente de indiciar pessoas sobre as quais choveram indícios – testemunhados, flagrados, gravados – de participação numa operação suspeita. Como o festejado “FBI brasileiro” pode ter deixado passar uma dessa?

Comentário de um delegado da Polícia Federal a este signatário: “Em 30 anos de DPF, nem nos tempos da ditadura militar vi a instituição ser tão manipulada politicamente. Nas investigações ‘sensíveis’, as autoridades encarregadas são escolhidas a dedo. Uma das perguntas feitas nos bastidores da PF é por que não foi aberta uma investigação sobre a ‘doação’ de dinheiro de Paulo Okamoto ao presidente Lula, vez que Okamoto não declarou ao IRPJ a tal doação (crime federal de sonegação de informações fiscais). As associações de classe dos delegados, reunidas sob a Fenadepol (federação dos sindicatos dos delegados), estão em guerra contra a administração central do órgão, mas pouco podem fazer.”

A tentação de usar o Estado em favor do governo e do partido é especialmente forte nesse grupo que está no poder. Evidentemente, obrigar o Banco do Brasil a comprar uma montanha de ingressos para um show de arrecadação de fundos para o PT não teria sido um expediente casual.

Agora, vale a pena prestar atenção no que está acontecendo em torno do Ipea. Estão brotando aqui e ali, organizadamente, críticas ao “modo de pensar” da instituição! Não são críticas a um estudo, a um pesquisador ou mesmo ao presidente do instituto. Basicamente, o Ipea está pensando errado – e contra o povo!

O DNA dessas críticas não demoraria a aparecer. Em seu blog, o ex-ministro José Dirceu publicou no último dia 31 uma nota intitulada “Ipea precisa ser reintegrado ao Estado brasileiro”. O estilo é inconfundível.

Reintegrar ao Estado brasileiro, no dicionário de José Dirceu, significa pensar de acordo com a vontade do chefe. Acompanhem esse raciocínio do ex-ministro: o Ipea é sustentado com dinheiro público e o povo escolheu Lula, portanto o instituto tem de refletir o pensamento dos eleitores do PT.

Não adianta, democracia não se aprende fazendo assembléia partidária, assim como ter fé não é uma questão de quantas vezes se vai à igreja. Ou o sujeito preza a liberdade, ou não preza.

Para José Dirceu e sua turma, a liberdade é boa, desde que a Polícia Federal, o Banco do Brasil, o Ipea, o IBGE, as agências reguladoras e demais entidades públicas atendam ao seu projeto político privado.

Está fundada a democracia de cativeiro.

Guilherme Fiúza

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