sábado, março 31, 2007

Gostei de Ler

DO PRÓPRIO VENENO

por Christina Fontenelle

Racismo virou crime inafiançável e imprescritível em 1988, com a promulgação da nova Constituição. No crime de racismo considera-se que houve prejuízo contra toda uma classe. A LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Um deles está tipificado no Art. 20: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". A pena é de um a três anos de reclusão e multa. Tem mais: "§ 2º - Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza" a pena passa a ser de dois a cinco anos de reclusão e multa. Apenas em 1998, com regulamentação do Código Penal, foi tipificado o crime de injúria, que tem conotação particular, com o agravante de preconceito racial. A injúria tem menor potencial ofensivo.

"Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou".

As palavras são da Ministra Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em entrevista à BBC - BRASIL. Recorde-se: a ministra é paga com o dinheiro de TODOS os contribuintes, a despeito de serem brancos, negros, amarelos ou índios, para trabalhar, supunha-se, em nome de TODOS eles. Além dos brasileiros terem que vestir uma carapuça de "racistas", cujo merecimento é pra lá de discutível, agora vão ter de lidar com fato de que, ao que parece, aos olhos da ministra, nem TODOS são tão TODOS assim.

É tanta sandice num único período que fica até difícil comentar. Primeiro: se um indivíduo negro, verde, rosa ou de qualquer outra cor se insurgir contra um branco, um amarelo ou um roxo, apenas por causa da cor de sua pele, é racismo sim. Segundo: se a reação de um negro de não querer conviver com um branco ou de não gostar de um deles, apenas pela cor de sua pele, for natural, é obvio que a recíproca também pode ser. Mas, não é. Para a Ministra, ao que parece, branco que não gosta de negro é racista; mas negro que não gosta de branco é apenas um ser humano que deve ser compreendido historicamente em suas reações. A justificativa da dona Matilde é pior ainda: "quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou".

Alguém aí conhece algum feitor de escravos vivo? Acho que não. Portanto, a ministra está a dizer que foram todas as pessoas de pele não caracterizadamente negra que açoitaram os negros do país. Sim, porque falar de raça aqui no Brasil fica difícil, por causa da miscigenação – então a gente entende o termo como "preconceito de cor", digamos assim. Este tipo de racismo geneticamente herdado e perpetuado tem dado significativos exemplos históricos de estupidez. Será que se criou a Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade para importar, à custa do contribuinte brasileiro, o mais radical modelo de intolerância?

Eu deixei a parte em que a Ministra faz a sua definição de racismo por último. "Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros". Embora nem sempre o direito (lei) seja o direito (correto), trata-se de uma conquista estabelecida por lei. Portanto, o que não está estabelecido por lei, embora possa ser uma reivindicação justa, é apenas uma reivindicação justa e não um direito. Logo, se uma maioria, seja ela qual for, coíbe ou veta direito dos outros, a maioria estará cometendo um crime. E, quem comete crimes deve ser punido, segundo um código penal estabelecido. Outra coisa: a Ministra precisa decidir-se, pois a definição de racismo que ela deu, ao contrário do que normalmente prega, está mais para a de "preconceito social"- ou financeiro,como queiram.

Está faltando, também, um pouco de conhecimento de História. Eu só não entendo como isso pode acontecer no mundo de hoje, com a internet. Para falsificar a História, ou para dela tirar apenas aquilo que dela se convenha tirar, em nome de causas fabricadas, será preciso retornarmos ao obscurantismo da Idade Média – queimando livros e bloqueando o acesso livre (que hoje já não é tão livre assim) à rede mundial de computadores.

A escravidão é tão antiga quanto a própria história da humanidade. Os primeiros escravos foram produtos das guerras entre tribos e povos, quando o destino dos vencidos era, quase sempre, a escravidão. Um escravo branco famoso? Em 1575, o escritor espanhol, Miguel de Cervantes, autor da famosa obra Dom Quixote, foi capturado por corsários argelinos e passou 5 anos como escravo, na Argélia, até ser comprado de volta por seus familiares.

A Mesopotâmia, a Índia, a China e os antigos egípcios e hebreus utilizaram escravos. Na civilização Grega o trabalho escravo acontecia na mais variadas funções. Aqui, nas Américas, as civilizações asteca, inca e maia empregavam escravos na agricultura e no exército. Na África, os árabes muçulmanos praticaram o tráfico escravo de negros e de seus semelhantes, antes, durante e depois dos europeus. Os antigos reinos africanos, sempre em guerra entre si, jamais esperaram a chegada dos "brancos" para praticar entre eles mesmos o comércio de escravos. Esta atividade passou a ter rotas transoceânicas, no momento em que os europeus começaram a colonizar os outros continentes, no século XVI. Naquela época, reinos africanos e árabes, eles próprios, passaram a capturar escravos para vender aos europeus. Está tudo lá, na Wikipédia e em outros sites menos famosos, na internet.

Foi só com o surgimento do ideal liberal e da ciência econômica na Europa, que a escravatura passou a ser considerada pouco produtiva e moralmente incorreta. Mas ainda existe até hoje, inclusive aqui no Brasil, sob as mais variadas formas, nenhuma delas, entretanto, determinadas pela cor da pele. Há o tráfico de seres humanos para servir ao comércio de órgãos humanos, à prostituição e até ao mercado de trabalhadores domésticos no exterior. Trabalho escravo também há.

A ministra disse, nessa mesma entrevista concedida à BBC - BRASIL, que: "Na educação, uma lei de 2003 obriga o ensino da história e cultura afro-brasileiras para as crianças, desde o início. O processo de implementação está em curso". Espero realmente que se conte a História toda – completa. Conhecimento é bom, é ótimo – lavagem cerebral é que não.

Um ou dois dias depois da polêmica entrevista à BBC - BRASIL, a ministra deu outra entrevista, dessa vez ao Portal do PT, em que disse ser o racismo "uma forma de manifestação existente em várias sociedades, não apenas no Brasil, e que está balizado por poder. Quem tem poder econômico, político, poder de decisão, toma decisão excluindo quem não tem". Novamente Matilde retoma a questão social do racismo. Entretanto, a ministra atirou no que viu e acertou no que não viu. É que não há como discordar de que ela tem razão quando diz que quem tem poder exclui quem não tem. A classe média brasileira, por exemplo, trabalha para pagar contas e para financiar o governo, inclusive em projetos que não são os do povo brasileiro – como o da segregação racial, o da impunidade parlamentar e coisas do gênero -, e, no entanto, está excluída de todos os projetos sociais deste mesmo governo, tendo que pagar por segurança, saúde e educação, para dizer o mínimo. E fica a pergunta: o artigo 20 da lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor está valendo?

1 comentário:

Anónimo disse...

Também gostei de ler.
Vc já tinha me falado disso, por alto...
Mas falar de preconceito racial no Brasil é algo complicado. Acredito que aqui, em primeiro lugar, o preconceito é social (dos mais ricos com relação aos mais pobres, dos detentores de qualquer tipo de poder - seja ele econômico, político ou de informação - com relação aos que não o têm, como uma forma de preservação desse poder, o que pode ser explicado por nossas raízes sociológicas - o brasileiro pensa primeiro em si e depois nos amigos; o coletivo, o público, são os outros, e quem tem que se preocupar com eles é o Estado). Mas não há como negar que há preconceito racial. E esse preconceito vem como conseqüência do preconceito social. Como "branco" (nos EUA ou na Europa, não fosse a minha cidadania portuguesa, eu seria considerado latino, e, portanto, discriminado) proveniente da classe média, nos colégios por que passei, onde a maioria dos alunos era composta por brancos de classe média "pra cima" (na faculdade idem), assim como em casa, desde cedo ouvi piadas racistas, e "aprendi", sem qualquer fundamento cultural, sociológico ou científico, que negros eram burros e fadados a ser pobres, e portanto mereceriam todo o tipo de "castigo". Neste mundo, os negros eram minoria, e os poucos que haviam ou eram discriminados, ou tratados como se brancos fossem, hipocritamente (tinha um garoto na minha sala cujo apelido era Feijão - alguma dúvida de como ele se sentia?). Acontece que eu cresci e desenvolvi raciocínio crítico. Embora racionalmente não seja preconceituoso, esse tipo de preconceito fica enraizado no subconsciente, e por um instante quando vejo alguém fazendo "merda", penso: tinha que ser preto; para no instante seguinte me censurar por ter tido esse tipo de pensamento. Odeio pensar assim, odeio ter esse tipo de "reflexos", tenho amigos negros e não penso neles como "meus amigos negros". Mas parei de me culpar tanto, pois sei que boa parte disso vem do ambiente em que me desenvolvi, e existe em toda parte.

Assim como eu, muitos ouviram as mesmas piadas, e "aprenderam" as mesmas besteiras. Alguns têm a sorte de ter desenvolvido esse raciocínio crítico, outros simplesmente não se manifestam porque é crime, ou por ser moralmente incorreto. Boa parte do preconceito contra negros está fundada no fato de que os negros representaram (e ainda representam, em sua maioria) a camada mais oprimida da sociedade brasileira.

Muito embora falar de "racismo" no Brasil seja burrice, por conta da miscigenação, que é regra aqui (sorte a nossa), não há como calar diante dos fatos. Brasileiro é tão espírito de porco que até os "brancos" pobres, mesmo tendo piores condições sociais ou menos cultura e educação, têm preconceito contra negros. Assim, acredito que a lei tenha que agir de forma a garantir a todos as mesmas condições (e isso, na maioria das vezes, não significa tratar a todos de forma igual, porque cada um - indivíduo ou grupo - tem características e necessidades diferentes). Embora não concorde com a forma como isso é feito, através de "ações afirmativas", acredito sinceramente que algum tipo de medida deve haver. Tenho certeza, porém, que se eu fosse "negro", pensaria diferente, talvez até aplaudisse as "ações afirmativas". Nunca senti na pele esse tipo de preconceito. E é natural que os "oprimidos" de qualquer natureza sintam raiva de seus opressores, e canalizem a raiva que sentem contra toda uma classe, mas isso está tão errado como culpar os "negros" porque um pivete "negro" roubou o seu celular. É preciso, sim, mergulhar nas raízes do problema (mais sociológicas do que históricas, pois esse é um conflito atual) e se educar para não cometer esse erro, assim como alertar a todos para isso.

Conclusão: se a sociedade, moral ou juridicamente, condena o preconceito, do ponto de vista étnico-social, deve condená-lo sob todas as suas formas. Da mesma forma que atitudes excludentes são erradas e devem ser coibidas, não se pode usar isso como justificativa para atitudes também preconceituosas. Embora seja compreensível essa "raiva" causada pela opressão, não é justificável, e também é preconceito. E esse preconceito também deve ser condenado e coibido, sob pena de se gerar distorções morais e instabilidade social. Isso pode ser "remediado" através da lei, mas só é realmente alcançável através da educação. Mas para criticar é preciso compreender...